Quando somos pequenos é normal perguntarem-nos o que queremos ser quando formos grandes. Lembro-me como se fosse hoje que, enquanto os outros meninos queriam ser astronautas, jogadores de futebol, vereadores das obras públicas, ou médicos especialistas em ginecologia e obstetrícia, eu sempre dizia que queria ser... trapezista.
Talvez não soubesse explicar muito bem porquê mas, sentia que havia qualquer coisa de mágico numa profissão em que nos é permitido andar sempre de cabeça no ar, a fazer umas piruetas e a dar umas cambalhotas com raparigas lindíssimas e desinibidas, que fazem o que querem do seu corpo.
Ou seja, não era propriamente o circo que exercia grande fascínio em mim, muito pelo contrário, e até me lembro de ter dito bastas vezes, "mais vale trapezista por cinco minutos, que palhaço toda a vida."
Acho que o meu gosto por sítios altos e posições arriscadas, nasceu num dia muito quente, em pleno Verão. Subi ao velho carvalho da minha rua e descobri que a dona Carminda do 2º andar, era tão hospitaleira e prestável, que recebia a visita de homens solitários no quarto, durante a tarde, enquando o marido estava no emprego. Era mesmo simpática a dona Carminda. Quando eles chegavam, tratava logo de os pôr à vontade e tirava-lhe também a roupa pois estava muito calor. Só que coitada, ela devia ter problemas de asma e passado um bocado começava a arfar, a fazer sons esquisitos, e com certeza a precisar de levar mais uma bombada. Enquanto isso, cá fora, eu pendurava-me e saltava de ramo em ramo na tentativa de encontrar o ângulo que me permitisse ver melhor. E foi assim que descobri que aquilo era bem capaz de ser a melhor coisa do mundo.
Inconscientemente, acho que também era atraído pelo trapézio por considerar que este é o exacto oposto da política: Se é verdade que os trapezistas também fazem malabarismos nos bastidores, acrobacias arriscadas e manobras de diversão, ao contrário dos políticos, no final rezam sempre para serem apanhados.
O primeiro albúm que comprei, ainda em vinil, foi "O Rapaz do trapézio Voador", dos Rádio Macau. E o mais engraçado é que eu nem sequer tinha gira-discos. Só eu era um miúdo coerente e até podia usar o albúm, para jogar frisbee com o meu cão. Atirava o disco e ele apanhava-o no ar. Tinha piada porque o Boss gostava particularmente de morder e riscar o lado B, aquele que eu imaginava ter as piores músicas.
Nunca me vou esquecer que depois das aulas, enquanto todos os meninos corriam para ir jogar à bola, eu corria para o baloiço. E ali ficava sem ninguém para me empurrar porque todos os outros estavam a jogar à bola. Durante três anos permaneci assim, sentado no baloiço todos os dias (exceptuando aqueles em que dava a “Heidi”), até que descobri que eu próprio, dando às pernas, me conseguia impulsionar e balançar. Aí, tornei-me mesmo bom no baloiço. Passei a sentir-me tão à vontade que me punha em pé e balanceava-me a uma velocidade incrível. Tão incrível que um dia excedi-me no impulso, dei uma volta completa e aterrei em cheio e com toda a força, com a cara no chão. Eu até tinha um nariz bonito. E as saudades que eu tenho dos meus dentes da frente. Mas serviu-me de emenda, a partir dali, comecei a abrir os olhos. (A abrir pelo menos um. O outro olho ficou com a persiana meio descaída desde o acidente. )
Mas dizia eu que, comecei a ver as coisas de outra forma e há medida que fui crescendo o meu interesse pelo trapézio foi esmorecendo. Houve inclusivamente uma determinada fase da minha vida, em que eu me vi forçado a colocar a hipótese de trocar o meu sonho do trapézio, pelo dos andaimes das obras.
Fui-me apercebendo também, que é capaz de não ser assim tão entusiasmante para um homem adulto, andar pendurado por arames com umas meias-calças vestidas. Por essa altura lembro-me de ter pensado, "se eu caio lá de cima, esborracho-me no chão. É lá possível, morrer com alguma dignidade, estando com uns collants enfiados?!"
Depois e mais recentemente, perdi em definitivo a fé no trapézio. Os trapezistas foram-se tornando cada vez mais parecidos com os telemóveis: só trabalham com rede. E com a rede, que honra é que essa profissão pode ter? Se há segurança e ninguém se pode aleijar, que piada poderá haver em ser trapezista? Com tristeza, sou levado a concluir já não se fazem trapezistas como antigamente.
Acaba aqui a minha história. resta-me dizer que embora já esteja muito longe das minhas fantasias de infância e afastado do meu sonho de trapezista, ainda hoje não posso deixar de considerar que apesar de tudo, a vida dá muitas voltas. E algumas pelo ar.